Jordana Thadei
A porta de vidro que dá para a varanda me distrai do trabalho, enquanto as chuvas de verão açoitam São Paulo. Toda tarde é assim, até que eu me rendo e me coloco a contar, pacientemente, quantas cerâmicas do chão já foram cobertas pela água, quantas faltam para chegar até a porta e, às vezes, quantos centímetros restam para que a água entre na sala e danifique o piso de madeira. Vez ou outra, enfrento a tempestade e vou até o único ralo, aliviá-lo das folhas das plantas, arrancadas pelo vento.
Abandono meu pequeno pesadelo de classe média privilegiada e me transporto à infância no interior de Minas, onde a possibilidade das enchentes nos molhava o sono, no verão. O sonho da casa própria nos levou da “Rua da Ordem” para uma travessa da Beira Rio, numa casa com garagem, um escritório independente e um grande quintal com três casuarinas.
Na casa da vizinha, a linha amarela que percorria todos os cômodos, a mais ou menos um metro do chão, me despertou a atenção. Ela esclareceu, como quem informa quem é a pessoa na fotografia do porta-retrato:
— É a marca da água.
— Que água? — perguntei.
— A água da enchente, uai!
E mostrou os ganchos no teto da casa, para içar os móveis mais leves e as malas que ficavam prontas no alto dos guarda-roupas, os armários da cozinha esvaziados na parte de baixo e acumulados na parte alta e, também, as comportas em todas as entradas e janelas. Por fim, jogou a última pá de cal:
— E o nosso terreno é sessenta centímetros mais alto que o de vocês.
A mãe da menina, lendo nas minhas feições que isso nunca havia circulado lá em casa, pediu que eu chamasse minha mãe.
A mãe desaguou em choro, ali mesmo, diante do forte esquema de retardamento das águas. O financiamento nos afogando e a possibilidade de tudo ir por água abaixo, inclusive a própria casa. Naquela hora, soubemos que antes mesmo de as águas lamberem o asfalto da Beira Rio, a inundação já ameaçava a casa. Não dependia de o rio transbordar. Bastava encher o suficiente para atingir as manilhas que desaguavam no rio e a água voltava por elas, saindo no bueiro em frente à nossa morada e na rede de esgoto. Também não era só a chuva forte na cidade que provocava enchentes. Uma tromba-d’água na cabeceira, ainda que não caísse uma gota na cidade, era suficiente para que o rio enchesse.
Para piorar, o imóvel começava no nível da rua e ia descendo: um degrau da sala de estar para a sala de televisão, onde também ficavam os quartos. Outro degrau daí para a copa e mais um degrau para a cozinha. Por fim, três degraus para o quintal, que se transformava em lagoa, cujo terreno argiloso não favorecia a absorção da água, dependendo exclusivamente da evaporação. Os meses seguintes foram de elevação das partes mais baixas da construção, instalação de registros para fechar as tubulações, colocação de comportas e reserva do lugar mais alto — em cima do armário de casal — para o saxofone do meu pai.
No verão, o rio enchia sempre à noite. Minha mãe tirava a tampa de ferro e entrava no vão do registro, para fechá-lo, já que eu não tinha forças para isso. Passava a noite na janela, na ponta do pé, espiando o bueiro por cima da comporta e rezando. Às vezes, cruzava a Beira Rio, embaixo de chuva, e ia se certificar da altura do rio. Certa vez, entendeu que as águas estavam vindo e nos refugiamos na varanda da mansão da esquina, depois de saltarmos a grade, no meio da noite. Meu pai, que nunca tinha visto o cenário “antiguerra” nas casas dos vizinhos, também nunca estava em casa. Quando ele chegava, a mãe, quase sempre chorando, assaltava-o já na porta da sala, relatando o sufoco. Antes de qualquer coisa, ele perguntava:
— E meu saxofone?
Em uma das vezes, ela respondeu:
— Você não perguntou, mas seus filhos estão bem. Quanto ao saxofone, se a enchente passar, eu coloco ele na porta, pra água levar.
Não precisou. A última noite atormentada pelas águas, naquela casa, contava com a presença de meu pai. Ele permaneceu deitado por todas as vezes que minha mãe se levantou para vigiar o rio. Pela manhã, perguntou se era daquele jeito que ela atravessava as noites de fortes chuvas e ela respondeu que sim. Saiu para o trabalho e, no almoço, nos comunicou que a casa estava à venda. Não vivenciamos as enchentes. De invasão de águas, só as dos olhos de minha mãe. E foi muita água.
Ela nunca fez questão de esconder dos filhos que o pai perguntava primeiro pelo saxofone. Muito pelo contrário. Em toda a minha vida, só vi meu pai passar uma semana sem pegar no instrumento. E foi nessa mesma casa das águas, quando morreu meu avô paterno. Fora isso, estudava todos os dias, fazia exercícios repetitivos e acelerados. Era pai exercitando, cachorro uivando e a gente reclamando. Mas ao final de hora e meia ou duas de treino, nos agradava com duas ou três músicas completas. Nunca vi o saxofone esquecido fora do estojo revestido de veludo. Fosse a hora que fosse, tivesse bebido isso ou aquilo, guardava-o limpo e com as peças embaladas em flanelas. Anos depois pude entender a alma artista de meu pai, quando assisti ao filme “O piano” (1993) e compreendi que o sax não era só um instrumento. Era uma extensão de meu pai. Era a alma dele. Nunca mais reclamei dos exercícios e acho que perdoei sua preocupação, na casa das águas. Não dá para salvar o outro, quando nós mesmos estamos pela metade.