Jordana Thadei
Os queijos em exposição no empório na Mantiqueira me levam até meu avô, na infância em Minas. De dentro de casa, eu via o verde-abacate da Variant do vô colorir os vãos entre os balaústres do muro da velha casa, no meio do morro. Vô encostava o carro exatamente em frente ao portãozinho de onde eu podia vê-lo. Buzinava e, pela janela, balançava um saquinho. Eu cruzava a varanda em disparada até ele: muçarela de trancinha. Luxo, para a época. Outras vezes, trazia cana descascada, em pequenos gomos, cortados em cruz, e repetia o ritual do saquinho pela janela do carro, na porta de casa. Outras canas nunca foram tão doces.
Após o jantar, descascava as laranjas, pacientemente, com seu inseparável canivete de bolso. Depois, limpava as beiradinhas de cascas que sobravam na fruta, enquanto eu, ajoelhada na cadeira, desenhava caracóis na toalha de mesa, com as compridas tiras de cascas de laranja, que ele tirava sem quebrar. Eu comia o que chamava de “tampinha” da laranja — a primeira fatia bem fininha, que ele deixava presa por um pedacinho do bagaço. Vô me estendia a laranja com a tampinha levantada, para eu puxar. Das mangas, me interessavam uma ou outra lasquinha e os caroços que, lavados, ganhavam olho, boca, nariz feitos com caneta. De outras frutas menos comuns, guardávamos as sementes, para plantar na roça. Vô se orgulhava da variedade do pomar.
Vivi muito pouco na minha cidade natal, o que fez de mim hóspede frequente da casa dos avós, onde tinha regalias, como a toalha de banho mais felpuda e a camisola mais macia da gaveta. Vestir aquela camisola era como adormecer aconchegada na vó.
Com o passar dos anos, fomos invertendo os papéis. Eu enchia as casquinhas de canudinho com doce de leite para o vô, quando ele já quase não enxergava. Conversávamos, às vezes por horas, aguardando o almoço ou o jantar ou ouvíamos as suas músicas, nas cadeiras de balanço. Às vezes, eu lia jornal para ele. Pela larga porta da sala de visitas, eu via a vó indo e vindo da cozinha para a sala de jantar. De vez em quando nos olhava e sorria, demonstrando que o afeto com o vô se estendia até ela.
Na casa quase centenária, o quarto onde eu dormia e o quarto do casal ganharam banheiros próximos e, quando as portas desses banheiros estavam abertas, podíamos perceber a movimentação no outro quarto. No silêncio da madrugada, várias vezes, adormeci embalada pelo burburinho da conversa do vô e da vó. De vez em quando identificava um nome de um familiar, uma palavra solta ou expressões típicas da vó, como: “de primeiro...”, que ela usava para se referir a “antigamente”. Eu achava graça em ouvi-los revirando o passado. O vô nunca foi adepto a distribuir chaves da casa e fazia questão de verificar a porta trancada, a cada um que entrasse. Para não ter que acordar várias vezes, ele e a vó engatavam no papo até que o último cruzasse a porta e a casa pudesse, finalmente, silenciar, à espera do dia.
Certa vez, em uma das conversas de esperar o almoço, perguntei a ele do que tanto falavam na madrugada. “Falamos de tudo, minha filha: da família, do país, de política, de gente que já morreu, de coisas do passado, de atualidades...”, respondeu. Eu ouvia admirando a afinidade dos dois. Então, ele, em tom mais sério, disse: “se você se casar, um dia, case-se com alguém com quem você goste de conversar, porque vai chegar o momento em que a única coisa que vocês vão fazer juntos é conversar. Nem a dieta será a mesma”.
Por aqui, a dieta já não é a mesma. E quando a boa prosa adentra a noite, desafiando o sono, eu me lembro do vô. Acho que segui o conselho.