O túmulo perdido (A CASA DAS ÁGUAS E OUTRAS CRÔNICAS)


Jordana Thadei

A visita tinha sido uma encomenda da mãe. Ao voltar do cemitério, na manhã de finados, a filha comenta que o túmulo da família estava muito bem conservado, mas que havia sido difícil localizá-lo no cemitério. A mãe afirma que, provavelmente, ela visitou o túmulo errado, porque nem ele estava bem conservado e nem ele era difícil de achar, uma vez que podia ser avistado da ruazinha central do cemitério.
— Mármore branco? — perguntou a mãe.
— Não. Granito preto — respondeu a filha.
— Então tá errado mesmo. Cê colocou as flores em outro túmulo.
— Alguém da família pode ter mandado arrumar e mudou o revestimento, mãe.
— Sem dividir a despesa comigo? Acho difícil. Difícil não, impossível.
— Mãe, eu não estou louca, eu vi a placa da nossa família no túmulo.
— Então, é a placa que está no túmulo errado.
Vendo que a mãe não sossegaria enquanto não tirasse a história a limpo, a filha a convida para visitar o túmulo, mesmo sabendo que ela não aceitaria, pois não entrava em cemitério, em hipótese alguma, com a alegação de que “quem não é visto não é lembrado”. E deve fazer algum sentido, pois, na ocasião, a velha acumulava um século de vida.
Para a surpresa da filha, a mãe aceita o convite, e resolve enfrentar o medo de topar com o marido falecido. E lá vão as duas, dispostas a provar, uma para a outra, quem é que estava com a razão. No caminho, a passos lentos e de braços dados, lembranças do patriarca da família e, dentre muitas, o irritante hábito que ele tinha de chamar as pessoas com cutucadinhas no ombro ou tapinhas no braço, com as costas da mão.
No cemitério, as duas procuram o túmulo. Evitando atravessar o caos em que aquele lugar se transformou, a filha mostra, de longe, onde colocou as flores. A centenária afirma que não é aquele túmulo. A filha, para provar que é, sobe na mureta de uma tumba para ler as placas das sepulturas ao redor e dar mais referências da vizinhança à mãe. Na intenção de cumprimentar a centenária, alguém chega por trás e lhe dá uma “cutucadinha” no ombro, sem dizer nada. Um grito de pavor ecoa pelo cemitério, a filha se apavora em cima da tumba e, traída pelos óculos multifocais, dá um passo em falso e despenca de lá, fraturando gravemente o braço.
Socorro à mãe, pelo susto, socorro à filha, pelo tombo, o ocorrido segue para o hospital, gesso, remédio e... a dúvida: era ou não era o túmulo da família? No final do dia e momentaneamente aliviada das dores pela medicação, a filha conta que, no instante do grito da mãe, no cemitério, havia visto no suposto túmulo da família um arranjo de flores lindíssimo, de muito bom gosto, coisa fina mesmo, destoando dos vasinhos de violeta que ela havia colocado na primeira visita, pela manhã. A informação reforça a tese da centenária de que a filha visitou a catacumba errada.
Com o tombo e a hospitalização, o mistério da sepultura bem cuidada já se espalhava pela família: Quem teria tido tão nobres gestos?
Restabelecida a ordem nas vidas e passados alguns dias, um neto aborda a avó centenária:
— Vó, eu tenho uma coisa chata pra falar pra senhora.
— Fala logo, meu filho, não tenho mais idade pra suspense.
— É coisa de cemitério... E eu sei que a senhora não gosta. É que a Fulana me encontrou no Banco do Brasil e disse que não queria incomodar, mas... a nossa família pregou uma placa no túmulo da família dela.
A centenária estava certa e a filha com a cirurgia do braço marcada.

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Jordana Thadei

E-mail: jordanalivros@gmail.com

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